sábado, 10 de novembro de 2007

CONVITE PARA JANTAR

Mariana chegou cedo a Heidelberg, antes do pôr-do-sol. Como de costume Ricardo estava à sua espera na estação. Março estava a chegar ao fim e ainda havia uns restos sujos de neve nas beiras dos passeios.

A viagem de eléctrico foi rápida. Quando chegaram a casa Ricardo ordenou:

- Vai tomar duche e arranjar-te. Eu já tomei antes de te ir buscar, agora é só vestir-me.

Mariana sabia que uns amigos ou conhecidos de Ricardo o tinham convidado para jantar e que tinham insistido em conhecê-la; por isso trouxera na bagagem cosméticos, um vestido de cocktail decotado, meias de nylon e sapatos de salto alto. Mas quando saiu da casa de banho em calcinhas, soutien e cinto de ligas, segurando o vestido à frente do corpo para Ricardo ver, este disse-lhe:

- Não, assim não. Tira tudo, põe só aquele vestido em cima do corpo.

E mostrou-lhe o vestido que tinha estendido sobre a cama, comprido, vermelho escuro, todo de véus e transparências. Sobre a mesinha de cabeceira, aberto, um estojo com bijuterias: colar, pulseira, anéis, adornos para os pés, tudo engastado com pedras - granadas ou turmalinas - da mesma cor que o vestido.

- Mas eu pensava - disse Mariana, surpreendida - que o convite era formal.

Ricardo já estava vestido: fato preto sobre uma T-shirt preta que parecia de seda, sapatos com solas de couro e atacadores, um anel de metal escuro com uma pedra preta na mão esquerda.

- E é formal, as formalidades é que são outras.

E mostrou-lhe o convite: «Schwarzer Anzug, Halsband».

- Fato preto? Coleira? Vais pôr-me uma coleira, como as dos cães? Quem é esta gente, afinal?

- O Gunther e a Silke sabem que a tua coleira é andar descalça - respondeu Ricardo. - Veste-te.

Ao enfiar o vestido, Mariana verificou sem surpresa que a parte de cima era bastante transparente. Isto não a incomodou sobremaneira, sabia que tinha os seios bonitos e gostava de os mostrar. O que a preocupava era outra coisa:

- Vais-me obrigar a ir descalça pela neve? Em cima desta bijuteria não posso calçar nada...

- Não faz mal, a casa deles é aqui perto. Mal vais sentir o frio.


O apartamento de Gunther e Silke ficava no terceiro andar dum prédio antigo sem elevador. No átrio de entrada Ricardo ajudou Mariana a tirar o casaco e entregou-o, juntamente com o seu sobretudo, à pessoa que lhes tinha aberto a porta: uma mulher de cerca de trinta anos, bonita, com os cabelos severamente apanhados na nuca e um caftan preto que lhe caía até aos pés nus. Mariana reparou que a mulher, tal como ela, não trazia coleira; reparou também que nem Ricardo a cumprimentou nem ela disse nada: apenas quebrou a sua posição hierática para lhes arrumar os agasalhos num armário e para lhes indicar, com um gesto cheio de dignidade, a entrada da sala.

Lá dentro, à espera, estavam os donos da casa: um homem louro, mais alto e mais entroncado do que Ricardo, vestido como ele excepto por uma camisa e gravata pretas. Atrás dele e um pouco para a esquerda estava uma mulher alta, magra e de cabelos pretos que se manteve de pé com os olhos baixos enquanto o homem avançava um passo, apertava a mão a Ricardo, dava as boas-vindas e fazia as apresentações:

- Ach, Richard, willkommen. Das is meine Frau Silke.

- Bezaubert. Und das ist meine Sklavin Mariana - respondeu Ricardo. - Mariana, Gunther. A Silke é a mulher dele.

Silke estava toda de preto: mini-saia e colete de cabedal, meias de nylon, sapatos de salto alto e uma coleira com picos metálicos como as dos cães pastores. Sempre de olhos no chão deu dois passos em direcção a Ricardo, dobrou os joelhos numa vénia e beijou-lhe a mão. Depois avançou em direcção a Mariana, levantando para ela os olhos que eram dum azul quase transparente e beijou-a na face.

Mariana estava em plena vertigem: tinha sido apresentada por Ricardo como a sua Sklavin (escrava); tinha visto pela primeira vez, sem ser em fotografias, uma pessoa com uma coleira de cão; e agora esperava-se dela, era óbvio, que cumprimentasse um homem desconhecido com um beijo na mão. Chamou em seu auxílio todo o treino em boas maneiras que tinha recebido em criança e adolescente. Pareceu-lhe ouvir a mãe, as tias, as freiras do colégio: em casa das pessoas tens que fazer como as pessoas. Sem dar sinal da sua perturbação, dirigiu-se a Gunther, fez-lhe uma vénia e beijou a mão que ele lhe estendia. No dedo anelar viu um anel de pedra preta igual ao de Ricardo. Sentiu que os olhos dele a examinavam de cima a baixo e ouviu-o dizer a Ricardo:

- Schade, dass Sie Ihre Sklavin nicht verteilen...

Mariana ouviu estas palavras com alívio. Se para Gunther era uma pena que Ricardo não partilhasse a sua escrava, para ela isto não era pena nenhuma. Pelo contrário, o temor de que ele o quisesse fazer, conjugado com a certeza que tinha de que o recusaria, era a causa principal da perturbação que sentia. Mais calma, olhou para a sala com maior atenção. No fundo, junto da mesa, estavam duas raparigas louras, calçadas como Silke com meias pretas e sapatos de salto alto. Tinham saias até abaixo dos joelhos mas estariam nuas da cinta para cima se não fosse pelos peitilhos brancos, que mal lhes cobriam os seios, dos aventais folhados. Na cabeça, completando os trajos de criada, traziam toucas brancas rendadas e folhadas como os aventais, e no pescoço coleiras como a de Silke.

A um sinal da intendente ou governanta que tinha aberto a porta da entrada, e que entretanto tinha regressado à sala, estas raparigas serviram uma bebida a cada um dos homens. Silke serviu-se a si própria e a Mariana e começou com ele uma conversa, ou melhor um interrogatório. Desde quando era Mariana escrava de Ricardo? Porque é que não usava coleira? Porque é que estava descalça? A bijuteria era muito bonita e ficava-lhe muito bem, sobretudo nos pés. Tinha sido R icardo (Silke dizia Richard) que lha tinha dado?

A curiosidade de Mariana não incidia tanto sobre Gunther, ou Silke, ou as criadas, ou mesmo sobre as coleiras, como sobre a figura de mulher que lhe tinha aberto a porta. Quem era ela? Porque é que nunca falava? Ach, es ist nur die Hilda, die Verwalterin. Só a Hilda, a governanta. E porque é que estava descalça? Ora, andava sempre assim. Era ela que queria. Era uma pessoa muito sóbria, sehr genügsam, e gostava do silêncio.

Durante o jantar Mariana quase só teve olhos para Hilda, apesar do silêncio e da quase invisibilidade com que esta, com os seus pés nus e o seu traje severo, dirigia o serviço. Uma vez, uma vez só, Hilda encontrou o olhar de Mariana - e isto intencionalmente, com o propósito óbvio de lhe indicar, por um sorriso quase imperceptível e um igualmente discreto inclinar de cabeça, que a compreendia e saudava.

Depois do jantar, servido o conhaque e acesos os charutos, Hilda desapareceu. Mariana, a um sinal do dono, sentou-se no tapete à frente dele. As duas criadas colocaram-se de pé, sem que ninguém lho tivesse ordenado, junto dos dois homens, que lhes levantaram as saias e lhes foram acariciando os sexos - uma tinha-o rapado, a outra não - enquanto conversavam sobre as subtilezas da investigação literária e ignoravam ostensivamente os ciúmes de Mariana, vestida de vermelho e prostrada no chão.

1 comentário:

Anónimo disse...

Este género de fantasias têm tanto de erotismo, sensualidade e mistério como de crueldade, agressividade e responsabilidade. Penso que todos nós já fantasiámos com festas destas. Adorava participar numa mas, para além da curiosidade, tenho a sensação que ficaria com imenso medo de que a situação não tivesse a autenticidade esperada e que as pessoas não agissem com a naturalidade necessária, ou seja, que não passasse de um acto de uma qualquer peça de teatro. Se isso fosse conseguido certamente que seria um grande momento.
Em Portugal, duvido que alguma vez fosse possível ter um momento como este, mais uma vez cheio de requinte, bom gosto, beleza e, ainda por cima, que fosse verdadeiramente sentido.