domingo, 11 de novembro de 2007

A DANÇA


O bairro do Sacromonte é dos poucos lugares de Granada que não são dominados pela visão tutelar da Serra Nevada ou da Alhambra. A serra é escondida pela estreiteza das ruas e pela altura dos muros, que apenas a deixam ver de relance num ou noutro virar de esquina; e a acrópole mourisca está demasiado próxima para que a vista a abarque. Para ver um panorama desimpedido da serra haveria que subir aos próprios jardins do palácio; para o ter deste haveria, pelo contrário, que descer as ruelas íngremes até ao fundo do bairro e subir as da colina fronteira – Albacín, a medina – até ganhar distância e encontrar miradouro. A vivenda que Ricardo e Mariana tinham tomado de empréstimo ficava no Sacromonte a meia encosta, no fundo de um carmen murado. Mas, se não viam a Alhambra, não deixavam de lhe sentir a presença no rendilhado dos portões de ferro, na privacidade dos jardins, na própria cor das pedras. Mariana tinha tratado de tudo. A vivenda, tinha-lha emprestado o galerista de Baltimore que lhe organizara a primeira exposição em solo americano, e que levara a generosidade ao ponto de lhe pôr à disposição o automóvel que guardava numa garagem escavada na rocha. - Don’t think about it. – respondera, quando ela lhe tentara agradecer – The house needs to be aired. You will be doing me a favor, really. Just make sure you take out the Porsche at least once, it hasn’t been driven for two months. As férias de Mariana tinham começado um dia mais cedo que as de Ricardo. À proposta deste, que se encontrasse com ele em Heidelberg e fizessem a viagem juntos, respondeu Mariana que não: - Vou um dia antes, tenho ver como é a casa, preparar tudo condignamente para o meu dono… Ricardo não insistiu: se Mariana tinha feito planos não seria ele a estragá-los. - Quero ver o que vai sair daí – limitou-se a dizer. E com efeito, ao desembarcar do Talgo na estação de caminhos-de-ferro de Granada começou logo a ver, pelo sorriso travesso da amante, que havia ali grandes preparativos. Quando viu o Porsche no parque de estacionamento pensou que faria parte desses misteriosos preparativos e não estranhou quando ela lhe sugeriu, contra o habitual, que fosse ele a guiar. E não estranhou também em frente ao portão da vivenda quando ela lhe pediu para arrumar o carro, oferecendo-se para levar ela própria para dentro a mala dele e dando-lhe indicações para chegar à garagem. Ao regressar a pé Ricardo não se apressou: queria dar tempo a Mariana de terminar o que quer que fosse que tinha preparado. O portão de ferro trabalhado estava apenas encostado: abriu-se com um rangido e Ricardo encontrou-se num jardim perfumado, num carmen andaluz. Era Fevereiro; já fazia calor; mas os dias ainda eram curtos e o sol esplendoroso que o tinha acolhido à chegada tinha dado lugar a um crepúsculo acentuado pela vegetação densa. Um carreiro de lajes polidas, flanqueado por duas filas de velas acesas, conduzia à entrada principal. Ricardo fechou o portão atrás de si, percorreu a rota de luzes que a amante lhe tinha marcado, e bateu à porta. - Entra, está aberta. Vai-te sentando, eu já vou ter contigo. A sala estava disposta de uma maneira que Ricardo achou estranha. Todo o mobiliário estava acumulado num dos extremos: um divã, almofadas, tapetes, uma mesa baixa. Sobre a mesa estavam dispostos pratinhos com tapas, frutas secas e pequenos doces; de um bule exalava-se um vapor com cheiro a menta, e a única chávena confirmava o convite de Mariana para que ele se sentasse sem esperar por ela. Também a iluminação – quatro grossas velas em pedestais e mais duas sobre a mesa – estava toda do mesmo lado, deixando o outro numa obscuridade que mal permitia distinguir, a um canto, o que parecia ser um monte de panos pretos. Já Ricardo se tinha sentado e vertido para a chávena o chá de menta quando o monte de panos se mexeu e dele se destacou o corpo miúdo de Mariana; e foi quando ela se aproximou dele e da luz que Ricardo viu que estava nua, sem o menor adorno sobre o corpo. A luz das velas reflectia-se-lhe no brilho dos olhos e na brancura do sorriso, mas não chegava para que se lhe distinguissem pormenores do rosto ou do corpo. Porém Ricardo via-a nitidamente com os olhos da memória: o ventre musculoso e liso; a cintura delgada; as ancas, que numa mulher menos delicada de corpo seriam estreitas mas que em Mariana, comparadas com os ombros e com a cinta, eram largas; os braços e as pernas musculadas, de dançarina ou ginasta. Um efeito de luz, talvez o tremeluzir das velas, fez com que Ricardo se lembrasse dos seios de Mariana quando eram os dois estudantes em Coimbra: cónicos, pequenos, mas com mamilos e aréolas bastante grandes. Mais tarde, das duas vezes em que Marta tinha ficado grávida, os seios tinham-lhe crescido, mas depois voltaram a diminuir e Ricardo nunca os chegou a ver nessa fase. Quando os viu de novo estavam outra vez tão pequenos como vinte anos antes: apenas um pouco descaídos, o que causava a Marta um pouco de desgosto. Dois anos mais tarde, durante uma visita a Portugal, apareceu-lhe um nódulo no seio direito. Felizmente era benigno, mas era melhor retirá-lo; e porque não aproveitar a cirurgia, sugeriu o médico, já que Marta se lembrava com saudade dos seus seios de grávida, para colocar uns implantes? Marta teve dúvidas: ia ficar com um aspecto natural? Dependia da prótese que escolhesse, disse o médico. E dificultaria o diagnóstico de alguma coisa que aparecesse? Não: poderia fazer mamografias como antes, as próteses não encobririam nada. Pensando em como gostava de decotes, e na surpresa que ia fazer a Ricardo, Marta consentira; e tinha valido a pena: o peito, agora firme e generoso, parecia perfeitamente natural à vista e também ao toque, como comprovou Ricardo quando teve oportunidade de os sopesar. Ao sair do monte de panos Mariana devia ter accionado um comando qualquer, porque subitamente se começou a ouvir música: Estavam todas juntas, quatrocentas bruxas, à espera da lua cheia… Ricardo recordou-se do dia em que Mariana lhe tinha oferecido esta música pelos anos, um LP do tempo do vinil: tinha sido no apartamento que ela partilhava com outras estudantes, onde ele as tinha ajudado a revestir o chão com quadrados de alcatifa adquiridos quase de graça. Já nesse tempo Marta gostava de dançar para ele, e tinha o hábito de o fazer marcando os movimentos sobre os quadrados de alcatifa, como agora, décadas mais tarde, sobre as lajes quadradas do pavimento. Mas não era exactamente uma dança que Mariana executava, nem a música de Zeca Afonso se prestava a tal: era talvez uma mímica, a exposição de uma história, da história dos dois, do tempo em que Marta se sentava aos pés dele em posição de lótus e trocavam fantasias. A ilusão que os movimentos de Mariana davam a Ricardo de ter diante de si a Marta de outros tempos era reforçada pelo facto de nada no corpo dela, com excepção dos seios, ter mudado nessas décadas. (Segundo ela, tinha havido outras mudanças; o rabo estava mais descaído, por exemplo, e algumas rugas estavam mais vincadas; mas Ricardo, em quem se somava a normal displicência masculina com a cegueira de amante, não conseguia ver a diferença). Em todo o caso bastou um segundo e uma mudança na música para que Marta passasse de novo dos vinte e tal aos quarenta e tal anos: a aparelhagem sonora (devia ser um gravador de bobinas, à moda antiga, e as fitas deviam ter sido gravadas por Mariana expressamente para esta ocasião) tocava agora canções de Caetano Veloso: No dia do seu primeiro reencontro tinham posto a tocar um CD, Federico e Giulietta, enquanto percorriam a estrada de Coimbra à Figueira da Foz e a Quiaios pela Serra da Boa Viagem. A voz de Caetano, agora em fita magnética, cantava de novo Come Prima e Coimbra; Marta e Ricardo partiam de novo de Coimbra e iam à praia come prima, como dantes. Não, afinal não era uma mímica, mas os movimentos de Mariana invocavam os de Marta naquele dia, o caminhar pela praia, a procura duma rocha ao abrigo de olhares indiscretos, o penoso caminho de volta ao carro, a garrafa de água comprada à pressa no regresso porque no improviso do passeio se tinham esquecido de levar que beber… e agora em Granada o corpo dela, de si tão ágil e ligeiro, que nunca descaía os ombros nem arrastava os pés, lembrava o dele naquele dia, exausto e sedento. A primeira noite que tinham passado juntos depois do reencontro tinha sido na praia da Tocha, num apartamento alugado, já no final desse Verão. Tinha sido um fim-de-semana sem música, mas se alguma música o pudesse traduzir seria a colecção de boleros que agora saía dos altifalantes escondidos na penumbra da sala. Besame mucho… como se fuera esta noche la ultima vez … Mariana caiu de joelhos no chão de lajes e sentou-se sobre os calcanhares com as coxas separadas. Com um movimento impetuoso lançou para trás os cabelos, como fizera ao cavalgar Ricardo naquele apartamento em frente ao mar: de olhos fechados, de narinas frementes, arrebatada de paixão, retesos os músculos do ventre e os tendões do pescoço. O corpo curvado fremia de energia contida, como um arco pronto a disparar. Os seios, agora mais redondos e túrgidos do que naquele outro dia, suavizavam a dureza das clavículas e das costelas. Para que nunca amañezca, implorava a canção, e logo o solo de saxofone secundava a prece. Mas um dia havia de amanhecer: não tinha sido na Tocha, nem depois em Lisboa, Heidelberg, Brugges ou Paris; nem ia ser agora em Granada, mas algum dia, oxalá longínquo, poderia nascer uma manhã em que olhassem um para o outro como dois estranhos. Ricardo lembrava-se bem daquela noite, a primeira em que ele e Marta tinham feito amor depois de se reencontrarem: Marta tinha chorado então; agora exprimia sem lágrimas aquele pranto, no arquear do corpoe no erguer dos braços. À luz fraca das velas a penugem esparsa do baixo-ventre confundia-se com as sombras, mas ainda assim era possível descortinar, entre as coxas muito abertas, no sexo propositadamente exibido, um brilhozinho molhado que se assemelhava ao dos olhos e ao dos lábios. Mas este pequenino revérbero ocultou-se de novo quando Mariana, no fim do bolero, se endireitou, se inclinou para a frente, uniu os joelhos e ficou assim pelo momento que durou o silêncio. Ricardo tinha uma predilecção especial, de entre os quartetos tardios de Beethoven, pelo Opus 132; e deste Mariana tinha escolhido, para continuar a sua dança, o terceiro andamento, Molto Adagio, Andante, Molto Adagio. Serenamente, molto adagio, levantou-se, caminhou em direcção a Ricardo, pegou-lhe nas mãos e sentou-se ao lado dele. Estava toda nua, mas evocava nos movimentos do corpo um vestido primaveril, que ajeitava com as mãos para se sentar. Murmurou-lhe ao ouvido: - Às vezes, numas coisas que escrevo para mim, dou a mim mesma o nome de Mariana… E Ricardo lembrou-se do dia em que ela tinha escolhido, em Coimbra, o seu nome de escrava: um dia em que ele estava doente, doente de solidão, doente de dormir sozinho com a mulher ao seu lado na cama. E Mariana tinha começado a curá-lo. Agora, ao ouvir este molto adagio de Beethoven, lembrou-se do título do andamento: Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, Cântico de Graças de um Convalescente à Divindade. Bem escolhida, a música, apropriada às memórias que as palavras tinham convocado. Fez um movimento para beijar a amante mas esta escapou-se-lhe, rindo, e começou a caminhar pela sala como se o chão a magoasse. Praia pedregosa? Não: Mariana equilibrou-se num só pé e começou a examinar a sola do outro, como que a procurar um espinho. Um pinhal, uma mata? Mariana sentou-se no chão com as pernas cruzadas, alisou o pavimento à sua frente como se alisasse um tecido: um piquenique? Tinham feito tantos… Entretanto o quarteto tinha parado de tocar. Durante a pausa Mariana ajustou inconscientemente a posição do corpo: o torso erecto, a inclinação elegante da cabeça, a segurança dos gestos, tudo nela era agora a anfitriã perfeita, senhora absoluta da sua mesa – esteja esta posta com todo o requinte na sala, com simplicidade na cozinha, ou consista apenas numa toalha num pinhal. Postura esta, porém, logo contradita pela música que agora jorrava dos altifalantes: a complexidade elaborada de Beethoven dava agora lugar ao simplismo quase idiota duma melodia popular alemã. «Ach, du lieber Augustin, Augustin, Augustin», reza a cantigueta (que, dizem os musicólogos, é a primeira valsa conhecida na Europa) e evoca camponeses bávaros moçoilas louras de tranças e Dirndl, e canecas de litro a abarrotar de cerveja; ou então, traduzida para «the more we get together, together, together», traz à lembrança as aulas de inglês da adolescência. Mas para Ricardo e Mariana o que esta música evocava era o piquenique que tinham feito uma vez na Caparica, numa mata empoleirada sobre a praia, e o mirone que tinha andado de gatas à volta deles e a quem tinham posto a alcunha de Agostinho, porque era de Agostinho a cara dele. Subitamente, Ricardo recordou com toda a nitidez o calor do sol, a aragem, o cheiro da mata, a nudez de Mariana naquele dia. A mata era densa, e só se tinham apercebido da presença do voyeur depois de ele ter dado uma ou várias voltas à roda deles, de gatas. Ao vê-lo rir, Mariana abandonou a sua pose de grande dama, pôs-se de gatas (serigaita, serigaita) e começou a mover-se pela sala com ademanes exageradamente furtivos que depressa deram lugar a um saracotear descarado do rabo nu, que virara para o dono. A banda continuava a martelar o ritmo rudimentar da valsa: pum PUM, pum pum pum PUM pum pum, PUM pum pum, PUM pum pum; PUM, pum pum pum PUM pum pum, PUM pum pum PUM! E Mariana, perdida de riso, dançava de gatas, abanava os quadris, e fingia esconder-se por trás dos móveis como o outro, anos antes, por trás dos arbustos.E estava nesta galhofa quando a música, de repente, mudou. Vivaldi, As Quatro Estações. O Verão. Mariana pôs-se de pé num salto ágil e começou a caminhar em direcção a Ricardo em bicos de pés, em passinhos rápidos e a medo como se pisasse areia quente. Em vez do sorriso aberto e descarado de segundos antes, ostentava agora uma expressão de concentração, quase de dor; e naquele meio-andar, meio-correr, tremiam-lhe os seios. A voz dos violinos era toda claridade e brilho. A um gesto de Mariana todas as luzes da sala se acenderam, um conjunto feérico de lâmpadas incandescentes, fluorescentes, de halogéneo, de luz negra; algumas tinham sido instaladas por Mariana – ou pelo menos assim pareceu a Ricardo – expressamente para aquele momento, de modo a fazer resplandecer tudo o que ali fosse branco. Sob a luz branca e forte, a própria tijoleira vermelha escura pareceu adquirir a cor de salmão clara que Ricardo recordava de uma certa casa no Algarve. Mariana, de frente para ele, colocava um pé diante do outro e abria os braços numa pose de equilibrista, e Ricardo viu-a de novo a caminhar sobre os seixos duros da praia que lhe resvalavam debaixo dos pés. Durante esse encontro tinha-a obrigado pela primeira vez a andar descalça em casa e na rua. Durante o mesmo fim de semana Ricardo tinha ejaculado, pela primeira de muitas vezes, na boca de Mariana. Que também ela se recordava disto, mostrou-o ao ajoelhar-se (desta vez, porém, com as pernas escarranchadas, a exibir o sexo), formando um O com a boca e movendo a cabeça para trás e para diante ao som da música. Tinham sido dois dias com tantas coisas novas, tantas barreiras ultrapassadas… Lembrar-se-ia Mariana que nesse dia, antes de chupar o sexo do dono, lhe tinha beijado os pés? Sim, lembrava-se: Ricardo viu-a levantar-se, aproximar-se dele e ajoelhar-se de novo para repetir, com simulado constrangimento, um acto de submissão e homenagem que depois, com o tempo, se lhe tinha tornado natural. A vontade de Ricardo, por esta altura, era agarrá-la pelos sovacos e forçá-la a erguer-se o suficiente para ele lhe poder enfiar o sexo na boca. O que o corpo lhe pedia não era que ficasse ali, molemente enterrado no sofá como um sultão saciado, mas sim que se lançasse como um tigre sobre a presa. Conteve-se, porém. Obrigou-se a ficar quieto enquanto Mariana agia, comandava, dirigia tudo. Quando ela se afastou de novo sem sequer lhe aflorar com os lábios a ponta do pénis, Ricardo quase gemeu de frustração; mas deixou-se estar respeitosamente sentado, espectador atento do acto de comemoração e homenagem que a sua escrava criara para ele e para si própria. Apenas os olhos lhe dançavam, competindo em vivacidade com a música que enchia a sala. As mãos, mal esboçavam um movimento em direcção àquele corpo que tão intensamente o tentava, logo se retraíam e uma voz dentro dele proibia: - Não, ainda não; espera… Ainda faltava muito para que Mariana dançasse toda a história do seu amor e da sua escravidão. Pois seja, pensou Ricardo. Vou aguentar até ao fim ainda que rebente de desejo. Afinal não foi preciso esperar tanto. Mal se extinguiram os últimos acordes de Vivaldi, Mariana pegou no comando à distância e desligou a aparelhagem. - Queres comer? Ou queres outra coisa? - Anda cá, escrava – respondeu-lhe Ricardo. – Sabes muito bem o que eu quero. Mariana correu para ele, risonha, ajoelhou-se-lhe aos pés e começou a desabotoar-lhe as calças. - Ai sei, sei. Só se esta escrava fosse ceguinha é que não via esse volume dentro das calças do dono. E começou a chupar-lhe o pénis: sem requintes, sem delongas, sem tentativas de prolongar o prazer, apenas com a preocupação de o fazer chegar ao climax o mais rapidamente possível. Mas o prazer de Ricardo não foi menos intenso por lhe ser ministrado de forma tão expedita: pelo contrário, manifestou-se num orgasmo que lhe veio deveras das profundezas do corpo. Mariana engoliu tudo, continuou ainda por uns momentos a chupá-lo e a lambê-lo, levantou-se, e sugeriu-lhe que fosse tomar duche e vestir o roupão enquanto ela preparava alguma coisa de comer. Ao sair do quarto de banho, Ricardo viu que Mariana já não estava completamente nua: tinha posto um avental que a tapava à frente deixando ver os seios pelos lados, e por trás as nádegas roliças. Assim se manteve enquanto tomaram os dois uma refeição ligeira, ele sentado à mesa, ela de pé a a preparar e a servir a comida. - Senta-te outra vez no sofá – disse-lhe ela no fim. Ricardo ficou a vê-la enquanto ela levantava a mesa com a mesma eficiência e rapidez com que lhe tinha chupado o pénis; depois ouviu-a a cirandar na cozinha; e por fim viu-a voltar à sala. - Agora, meu Senhor, vou continuar a dançar para ti. Posso? - Dança, minha escrava. Mariana tirou o avental. De novo toda nua, ligou a aparelhagem e o ar encheu-se das vozes esganiçadas de um coro de mulheres: Também o mar é casado, ó ai, Também o mar tem mulher. É casado com a areia, ó ai, Bate nela quando quer. Era a Figueira da Foz, é claro. A noite que tinham passado no hotel, as palmadas nas nádegas que Ricardo tinha dado a Mariana e que tinham feito com que ela se desexcitasse – para se voltar a excitar logo a seguir com uma excitação nova e diferente, que nunca mais a tinha deixado… Mariana dançava com os braços no ar, rodopiava, corria, marcava o fim de cada verso com um bater do pé no chão. Mas sem aviso a música mudou, agora era Juliette Gréco a cantar Les Feuilles Mortes: Mais la vie sépare ceux qui s’aiment, Tout doucement, sans faire de bruit, Et la mer éfface sur le sable Les pas des amants desunis. No embalo da música, Mariana ondeava os quadris, os ombros, os braços, e caminhava na direcção deRicardo para logo refluir como o mar. Mas não por muito tempo, que não se queriam ali canções sobre amantes separados. A voz rouca de Gréco calou-se a meio da frase para ceder de novo o lugar às das varinas: O mar enrola na areia, Ninguém sabe o que ele diz. Bate na areia e desmaia Porque se sente feliz. A desmaiar de felicidade sentia-se Ricardo, enquanto observava extasiado o voltear da amante, tão depressa junto dele a oferecer-se toda, como – subitamente esquiva - no canto oposto da sala. Esta liberdade que Mariana assumia, nos movimentos da dança, de se negar ao seu senhor e dono era pura ficção, que mais não fazia do que acentuar o facto, por assim dizer normal, de Ricardo a possuir e de ela ser possuída por ele. Um único gesto dele bastaria para que Mariana desligasse a música e se lançasse aos pés do amante, pronta a satisfazer-lhe o mínimo ou o mais exigente dos caprichos. Ambos sabiam isto muito bem, e porque o sabiam é que esta dança lhes parecia uma excursão para fora do mundo e das suas responsabilidades, um conto das Mil e Uma Noites contado e recontado ali bem perto, na Alhambra. - Agora, meu Senhor, vou continuar a dançar para ti. Posso? - Dança, minha escrava. Mariana tirou o avental. De novo toda nua, ligou a aparelhagem; e dos altifalantes saiu um dos sons que Ricardo, tão pouco apreciador de folclore como Mariana, menos esperaria: uma modinha da Nazaré, ferrinhos, concertinas, cavaquinhos, pandeiretas, cântaros percutidos na boca por abanadores de palha e um coro de que sobressaiam as vozes esganiçadas das mulheres. Também o mar é casado, ó ai, Também o mar tem mulher. É casado com a areia, ó ai, Bate nela quando quer. Não se tratava de recordar a Nazaré, é claro. Ricardo e Mariana nunca tinham estado juntos na Nazaré. O que veio à memória de Ricardo foi outra terra de pescadores, a Figueira da Foz, a praia de Buarcos, o hotel onde tinham passado a noite e onde ele tinha batido em Mariana pela primeira vez. Não foi só pela música que Ricardo se recordou dessa noite, foi preciso também que Mariana, nos movimentos da dança, passasse as mãos pelas nádegas; e então, sim, lembrou-se das palmadas que lhe tinha dado e que a tinham, no dizer dela, «desexcitado» – e de como ela se tinha voltado a excitar logo a seguir, com uma excitação nova e diferente que nunca mais tinha deixado de colorir a relação entre os dois… Mariana dançava com os braços no ar, rodopiava, corria, marcava o fim de cada verso com um bater do pé no chão, como se durante toda a vida tivesse pertencido a um rancho folclórico e nunca tivesse faltado aos ensaios. Mas antes que a cantiga chegasse ao fim o som começou a esmorecer. Por fim já nada restava que não fosse uma batida surda e quase imperceptível, que Mariana acompanhava com gestos pouco mais que esboçados. E desta batida emergiu outra música, tão gradativamente como a anterior tinha terminado. Era ainda o mar; era ainda a Figueira, Buarcos, Quiaios, a Tocha, Mira, Sesimbra; mas visto com outros olhos, sentido com outros sentidos, cantado com outra voz. Fui ao mar No meu batel, Além ao mar cruel E o mar bramindo Diz que eu fui roubar A luz sem par Do teu olhar Tão lindo. A voz de Dulce Pontes. No embalo da música, Mariana ondeava os quadris, os ombros, os braços, e caminhava na direcção de Ricardo para logo refluir, como o mar. Que luz teria Ricardo roubado, e a quem, que assim iluminava o voltear de Mariana – tão depressa junto dele a oferecer-se toda, como, subitamente arisca, no canto oposto da sala, inacessível. Esta liberdade que Mariana tomava de se negar ao seu Senhor nos movimentos da dança era uma pura ficção que mais não fazia do que realçar, por contraste, a realidade; e esta era o direito absoluto de Ricardo sobre ela. Um único gesto que ele fizesse bastaria para que Mariana se lhe lançasse aos pés, pronta a satisfazer o mínimo ou o mais exigente dos seus caprichos. - Dança para mim, minha escrava. E Mariana dançava, abria os braços na horizontal, criava um movimento sinuoso que lhe começava na ponta dos dedos e se propagava horizontalmente até aos dedos da outra mão: uma sucessão de ondas, convexa na flexão dos pulsos e na redondeza dos ombros, côncava na dobra dos braços e na junção das clavículas. Mais abaixo oscilavam-lhe os seios como dois batéis sem lastro. O ventre, brilhante de suor, despedia revérberos como o mar no Verão, e as ancas poderosas balançavam como entre as margens dum oceano balançam as marés. Dançaria assim a Rainha de Sabá para Suleiman. o Sábio? Roxana para Alexandre, o Grande? Cleópatra para Marco António? Sentado no sofá na posição dos Césares, com o torso direito, os braços descansados nos apoios laterais, um pé mais avançado do que o outro, Ricardo era neste momento o imperator, o centurião; contemplava Mariana com o olhar tranquilo que um soldado lança aos despojos de guerra que lhe couberam; e foi com a sua voz de legionário, a sua voz de Leonardo, que repetiu: - Dança, escrava. Dança para mim… Mariana tinha dançado muitas vezes para Leonardo, como também para Gino, para Baltazar e para Jorge, os outros três avatares de Ricardo, e para cada um tinha estilos diferentes. A varina efusiva e vigorosa de uns minutos antes tinha desaparecido completamente para dar lugar a uma lânguida odalisca. A dança agora era uma dança do ventre: sem véus, nem sedas, nem guizos, nem moedas douradas a chocalhar, só o corpo nu de Mariana e os cabelos soltos; mas nem por isso um espectáculo menos sumptuoso. Xerazade, pensou Ricardo. E o mesmo tinha pensado Mariana, sem dúvida, ao organizar a sucessão de músicas, porque agora o que se começava a ouvir era a Xerazade Op. 35 de Rimsky-Korsakov. O primeiro andamento desta suite sinfónica, um Largo Maestoso, e o último, um Allegro Molto, aludem ao mar e a Sindbad, o marinheiro. Ao balançar das ondas acrescentava agora Mariana, nos movimentos da dança, a graça majestosa e a leveza dum dhow, essas embarcações de vela latina, antecessoras das caravelas portuguesas, que ainda hoje percorrem o Oceano Índico das praias do Hindustão às de Moçambique. Mariana fincara os pés no chão; a cabeça, conservava-a inclinada para a frente, imóvel numa posição que tanto podia ser de respeito como de concentração; e mantinha o pescoço na vertical, direito como um mastro num dia de calmaria. Entre o pescoço e os pés, porém, todo o resto do corpo se movia sem cessar, seios, cintura, ancas, cada músculo e cada refego de carne puxado numa direcção diferente como se todos os ventos do ar e todas as ondas do mar os disputassem. As mãos, como gaivotas, solicitavam a cada momento a atenção de Ricardo, forçando-o a desviar os olhos dos mamilos maquilhados de cor-de-rosa escuro (como ele gostava) e da racha entre as pernas onde de vez em quando podia entrever (como uma pérola ainda dentro da ostra, ou como uma gota de orvalho numa violeta) um brilho de excitação ou de suor.

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