segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Mário


Mário. Mário... abre a porta filho. Encostado à porta respirava ofegante, o pai olhava-o segurando-lhe num braço. - Não... Não abras... - Porquê? – insistira em perguntar. A mãe, era a mãe, ali fora, do outro lado da porta, perguntando, chamando por ele. - Porquê Pai? - Porque sim... Os dedos do pai magoavam-lhe no braço. Apertavam-lhe o braço. Mordiam-no... - Anda. – puxou-o e levou-o para o quarto, para longe da porta, para longe do chamamento da mãe, para longe do “Mário” que ele tanto conhecia. - Pai?! - A tua mãe não vale nada. É uma galdéria... não te merece. Calara-se. A mãe? O que era galdéria? Era louca? Sim, ela já lhe tinha dito... Mas sentia que o termo para o pai era diferente, era algo mau. Será que ela pensava que tinha sido ele? “Mãe não fui eu, mãe... eu não disse nada. Eu prometi. A mãe fez-me prometer e eu...” Nunca mais sentiu o cheiro do seu nome chamado por aquela voz. “Mário”, a voz que tão bem conhecia, a voz da mãe. Por vezes nas brincadeiras sentia a voz, a voz a seu lado dizendo “Mário...”. “Mário a mãe está tão feliz...”. “Mário a mãe é louca, está louca, tem tanto medo...oh filho”. Outras vezes quando a voz se tornava distante e desaparecia por vários dias ele sentia medo. Medo que a voz tivesse ido para sempre. “Mãe... Mãe volta. Não fui eu mãe”. O pai levara-o no dia seguinte para casa dos avós. Uma casa rural, onde iria frequentar a escola da aldeia. Não tivera tempo de trazer os seus brinquedos. Apenas uma mala com roupa. “Pai, a mãe vai voltar?”. “Não filho, a mãe foi embora não volta mais”. E aquilo soara-lhe a falso, e no fundo sentia ser mentira. A mãe voltaria. Claro que voltaria. A mãe e as suas mãos brancas. E quando chegasse baixar-se-ia e como costumava, falar-lhe-ia olhos nos olhos, à mesma altura dele, sempre baixa, sempre em frente. Beijar-lho-ia e ririam de tudo aquilo. Ele guardaria o silêncio. Ela saberia que não tinha sido ele a dizer. Prometera... No charco de Inverno, entretinha-se a mandar pedras. Quantas vezes a pedra batesse na água quantos os quilómetros em redor, onde a mãe estaria. A caminho, a caminho dele. Sentia-a. E queria mandar as pedras de forma a que batessem tantas as vezes quantas as necessárias para englobar todo o planeta. “Pensa em mim mãe, estou aqui e vem”. - Filho a mãe está tão feliz... Calara-se ouvindo-a. Os cabelos caiam-lhe pelo rosto, meio despenteada, eufórica. Os olhos brilhavam. Era um brilho diferente. Excitado e triste... tão triste. Mas ela dizia estar feliz. Triste sem dor. Triste... - Tem de ficar entre nós filho. O teu pai não pode saber. Se souber nunca mais me verás... não sei, mas ele tirar-te-á de mim. Prometes? A pele branca da mãe tocando na pele morena do homem. Enlaçados. Depositava a cabeça no ombro do homem. Por vezes chorava. Outras ria alto. E aprendeu que loucura era rir e chorar. Associar loucura à pele branca da mãe e aos seus olhos tristes numa boca alegre que diz “estou tão feliz”. A mãe e aquele homem que lhe dissera chamar-se João. O João, sorria-lhe e dava-lhe a mão como um homem. Sentia-se um homem. E não saia sem também se baixar na sua frente e dizer-lhe “Toma conta da tua mãe. Conto contigo”. Ele tomara, mas a porta, a porta verde da entrada, a mão do pai no seu braço impedira-o. Já anteriormente sentira que a mãe esboçava um olhar distinto, diferente do que lhe conhecia. Distraia-se com a comida no lume, o seu pão sem manteiga, o leite sem açucar. Ria-se e fazia-lhe um festa na cabeça dizendo “A mãe é uma tonta Mário”. Viera da escola, pousara os livros na mesa da sala. Silêncio. Não chamara pela mãe. Não costumava chamar. Sempre fora amigo do silêncio e dos pequenos sons. Das rãs, dos grilos, dos pirilampos, dos dedos na mesa da sala, dos dedos escorregando e agarrando na saia da mãe, das batatas na fritadeira, do cantarolar baixinho da mãe, do cigarro do pai na boca. Olhava e interpretava o som, imaginava-o caso não ouvisse, caso não existisse. Mas existiam, sempre. Só tinha de se esforçar por ouvir. Um gemido. No quarto um gemido. Era a mãe. E no gemido da mãe um gemido de um homem. O som de dois corpos que se esfregam e se tocam. “Mãe” chamara sem voz. Lentamente no corredor encaminhara-se ao som. Ao som vindo do quarto. Um ruído forte agora. Muito forte. E a mãe gemia alto. Chorava...Tinha vontade de correr a buscá-la, a protegê-la, a agarra-se-lhe para que não chorasse, mas não o fizera. Visualizou, o corpo nu e branco da mãe de joelhos. Uma mão morena que lhe agarrava nos cabelos. Abanando-a, maltrantando-a. As mãos da mãe atrás das costas, os dedos entrelaçados uns nos outros. “Puta... és uma puta”. “Sim sou... Senhor”. “És a minha puta...”. “Sim sou Senhor, somente sua Senhor”. Um ruído forte. Novamente. O ruído da mão morena na cara da mãe, do corpo da mãe estendido no chão. Chorava... e naquele choro apercebera-se que era nele que residia a felicidade da mãe. Naquelas lágrimas e naquela posição de joelhos a mãe era feliz. Era ali e perante aquele homem que ela ia buscar os olhos tristes e a boca aberta num sorriso. A mão agarrara no corpo frágil da mãe içara-o à força e mandara-o para cima da cama. Agora só lhe era permitido ver o corpo moreno e nu do homem de pé em frente à cama. O corpo nu do homem balouçando-se em frente à cama. Gemendo alto, gemendo baixo. Articulando palavras. Soltando-as. Delirando... Suando no delírio. - Puta. Fodo-te como a puta que és. Encostara-se à parede branca suja do corredor. Sentira o cheiro do suor do homem e o barulho dos seus dedos agarrando no cu branco da mãe que permanecia de quatro sobre a cama. A cabeça pendia-lhe dos ombros e por vezes mandada para trás mostrava ao mundo os olhos chorosos e a boca aberta num sorriso. Loucura... Permanecera ali até os dois corpos esgotados cairem na cama enlaçados. Gemendo, tremendo, loucos e desvairados. Depois entrara. “Mãe?!”. A mãe virara-se e sorrira-lhe. Tocara-lhe na testa afastando o seu cabelo dos olhos, “filho, oh filho... anda à tua mãe feliz”. O homem sorrira. E naquele momento amara a mãe, o homem, a cama, a luz do quarto, o cheiro da cama, do homem, da mãe, do quarto, do mundo... As pedras faziam ricochete na água verde. “Mário... Mário...”

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