quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Não lembro...


Aguardava-o ansiosa. Sentei-me a desenhar, esperando que o lápis me acalmasse. No sofá junto à janela podia ver espelhado no vidro a rua que descia. Vê-lo-ia, bastava olhar, no entanto evitava-o, para que a ansiedade não fosse crescente. Quanto mais pensava em não olhar mais os meus olhos fugiam para o vidro em frente. Afiei o lápis. O bico partiu e voltei a afiar. Um vulto passou no vidro e vi o topo de uma cabeça. Era Ele. Não me movi. Devagar, pousei o lápis, depois o livro com o desenho, levantei-me e fui colocá-los a um canto. Aguardava o toque da campainha e ele tardava, deu-me a sensação que fiz imensas coisas antes de lhe ouvir o som. Fui à porta e abria-a. Ficar nas escadas aguardando, ir para dentro? Sempre a mesma dúvida. Tentei abrir a porta, puxei o fio mas a porta permanecia fechada. “Empurre” e nada. Desci os degraus e fui abri-la. Luz. A luz da rua chegou-me e no meio da luz, envolvido pela luz, Ele. O que eu esperava. O aguardado. Sorri? Entre.

Subi as escadas sentindo o meu corpo exposto, as minhas costas expostas, o meu cabelo exposto, o meu cu exposto, as minhas pernas expostas. Apressei o passo, para desaparecer na esquina e perante aqueles olhos. Entrei e aguardei. Cada passo que dava em direcção a mim eu dava um atrás, para me afastar. Beijou-me? Não lembro. Sei que levantei o velho vestido mostrando a rata. Tocou-me nela e eu estremeci. “Ai Senhor” e como por magia excitei-me em segundos, calor e tremores no corpo. Apetecia-me abandonar-me naquelas mãos e tinha de me forçar a ficar de pé. Desmaio doce... Chegou-se a mim e eu com os braços pousados no Seu corpo, sem apoiar as mãos, gemia. “Porque me faz sentir assim. Assim tão sua... tão abandonada... tão abandonada a Si?” Os nosso olhos beijavam-se por vezes e eu de olhos submissos deixei que entrasse em mim por eles.

Dei dois passos em frente e expus o cu. Debrucei-me e com o auxilio das duas mãos abri-o. Senti uma mão e depois um dedo entrar por ele dentro. Quis sentir mais, tive medo de sentir mais. Tremia e queria poder descansar as pernas, apoiá-las. Um dedo na minha boca, o meu sabor na minha boca. Esvaio-me em tesão, em calor, em querer, em quere-Lo. “Possui-me, possuis-me?”.
De joelhos beijo um sapato preto e depois outro. O cabelo pelo chão, eu pelo chão, eu e o cabelo pelo chão, feitos manta de retalhos, feitos para ser pisados e amolgados, para servir. Amarro-o para que me veja a cara, a face, as expressões. E num beijo uma língua espatulada lambe o sapato preto ali junto a mim, junto ao meu nariz, junto aos meus olhos. Enquanto lambo, agarro num tornozelo como quem se agarra ao mastro de um navio naufragado. Agarro-o com força, com toda a minha força, e esfrego-me no sapato, entre os pés, aqueles pés. Descalço-o, tiro-Lhe as meias e quero gastar-me esfregando-me nos Seus pés. Consumir-me tal sabonete nos Seus pés. Lavá-Los com lágrimas, por sentir assim, por me fazer sentir assim.

Aceite-me de joelhos, subjugue-me. Levante-me quando e apenas eu for lágrimas e gritar por Si. Vença-me e derrote-me, permita-me olhar o vazio, parar os olhos, sentir sem sentir, deixar de sentir por tanto sentir. Confunda-me e baralhe-me. Ame-me e bata-me. Faça com que ao acordar eu não me lembre, nem me recorde e reste em mim apenas o som inaudível dos gritos do silêncio e da tontura de todos os momentos passados a Seu lado.

Depois? Não sei. Não sei o que se passou, sei que me dei e entreguei e que na dor por vezes me rebeliei, bati com as pernas fortemente na cama, implorando misericórdia. Misericórdia que não me foi concedida, pelo menos naquele instante...não quando eu quis, quando Ele quis.

Fiz o jantar e jantámos, mas antes como uma menina mostrei os meus brinquedos, que já não são meus mas são para brincar comigo. Com o meu corpo, com o Seu corpo. O chicote de instrução por estrear, que O chamou, que O sentiu, que Lhe sussurou “sou teu”. O braço que encontra o corpo. E nessa cumplicidade homem-objecto eu entrei para ser ferida, golpeada, torturada. Para em lágrimas pedir “oh mãe embala a tua filha”. E nesse choro, um desmaio, o subir ao céu com a Sua mão na minha coleira, apertando-me-a, asfixiando-me e matando-me aos segundos... e do céu sou largada à terra , como uma pena, sem peso, sem impacto. Vejo-O e sorrio. Que bom!

Os meus joelhos roxos, as minhas pernas cansadas, o meu corpo em arrasto, os cabelos soltos, as lágrimas e o ranho, reunidos num pedido, numa prece. E o seu abraço forte, o agarrar-me já na morte e consolar-me no desespero para quando recuperada me amarrar sem cordas chicotear-me ao roxo trémulo e intenso da carne dizendo-me “usa a safeword”. Não... Nos meus e nos Seus olhos a afirmação da intensidade que não poderia ser banalizada com uma palavra. Tinhamos tempo, tinhamos vontade.

A cera, a vermelha cera, a branca cera, quente depois colada, depois tirada a toque de chibata. Pelo chão os restos, o usado, não usado, objectos que por momentos ganham vida e deixam de ser anónimos.

Escapámo-nos à terra e por locais longíquos rimos dos nossos exageros, de como fantasiamos em grande, em camiões cisterna de esporra e mendigos que me fodem a cheirar a mijo. E um dia numa quinta ser-me-ão oferecidas umas joelheiras para que eu possa pastar todo o dia e à noite dormir com o cão.

E como ardeu e doeu e macerou o meu corpo. E como abriu e tocou e usou o meu corpo. E como viu e sentiu e observou além do meu corpo... Enlaçou-me após me vencer e eu estendida sorri.

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